Galiza com Palestina

SCD O Condado
2024

Participação na 36ª edição do Festival da Poesia no Condado, no recital e na antologia editada pola SCD Condado. É uma coletânea que abre com a saudação de Leila Khaled, e na que participo junto com as poetas Afra Torrado, Arancha Nogueira, Diana Kurich, Inma Nuñez, Iris Abril, Lucia Cernadas, Susana Araujo, Susana S. Arins e Shahd Wadi.

Eis o meu poema:




INTIFADA

Substantivo feminino do árabe انتفض: “agitação”; levantamento, em galego; “revolta”), é o nome popular das insurreições do povo palestino baixo ocupação colonial israelita.

(in·ti·fa·da)

O brilho dum olhar verdadeiro.

O brilho do olhar do pai nosso acariciando-nos o rosto. A sua cruz. A paixão com dúzias de milhares de cruzes. Em cada cruz um olhar palpitando. E nós com a vista areosa, seca, convertendo-nos em estátuas de sal, em peles de culebras, frias frente o plano-sequência de não-ficção deslizando-se sobre o calendário gregoriano de 2024. 

As espectadoras som as verdadeiras mortas do filme.

O brilho dum olhar verdadeiro.

O brilho da palavra intifada.

O zumbido da fame atravessa a coluna vertebral da nossa espécie. O zumbido da fame. O zumbido dum grupo de neonazis que se dizem judeus, e pisam alimentos às portas dum muro.

Como se ergue o corpo depois do massacre?

Como se ergue o corpo depois do massacre e como se olha para a cara das testemunhas que calarom?

As espectadoras som as verdadeiras mortas do filme.

In·ti·fa·da.

Como se articula a voz? Como se move o ar debaixo do peito? Como se mantém a abertura da caixa torácica ante a asfixiante narrativa colonial, executando um plano de extermínio? 

O corpo amputado ergue-se, procura o equilíbrio, entre a água e a sede, no meio do zumbido ensurdecedor das moscas sobre os pedaços da carne dum filho de sete anos. E acarícia-o e promete-lhe o futuro.

In·ti·fa·da.

O brilho dum olhar verdadeiro.

O brilho.

O punho.

A carícia.

A intifada.

A vida das que nom som espectadoras.

A intifada às vezes nom se escolhe. Mas há que saber cobrir o rosto, acariciar um mártir desconhecido. Deixar-se fundir no comum, um nós, um vizinho, e quando o vizinho falta, ser Xoán ou ser Mohamed ou ser Fátima agora, por exemplo. Maria antes era Rosa e agora é Adania. E tu tampouco es tam importante. Nem tam pouco.

Espectadora, tu, também vás desaparecer nas próximas rotações do planeta, e estaria bem ir-se sabendo o que é ser um povo.

Termar do corpo do mártir. Termar da vida. Defender a casa da mãe.

E enquanto isto acontece e o planeta se desliza sobre o seu eixo: Radicaliza-se o cinismo. Ultrapassamos o umbral do espanto.

No assassinato com o golpe de uma caixa de comida de “ajuda humanitária” lançada do céu, entre as bombas. Morrer precipitando-se do telhado dum edifício em ruínas –e flutuar no ar como se fosse um príncipe, como se fosse o obreiro tropicalista que viu caindo Chico Buarque- a cair, vários rapazes a cair enquanto tentavam resgatar uma caixa de “ajuda humanitária”. Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago afogado de extenuação a mergulhar na praia, puxando ao arraste para trazer cara a beira um desses lotes de “ajuda humanitária”. Morreu na contramão atrapalhando o público.

E enquanto isto acontece e o planeta se desliza sobre o seu eixo: in·ti·fa·da.

Um neno de dez anos a colocar as mãos como umha cunca invertida, como umha cúpula sagrada, a fazer um para-sol. Oferece umha sombra sobre o olhos do seu irmao menor, defunto e amortalhado no colo do pai. Exibido ante as câmaras. Entre o Mediterráneo e o Jordam. Em essas horas de sol em que sedimenta a infámia.

O neno criou com as maos umha cúpula sagrada. Parece um fotograma dum filme de Kiarostami. A sensaçom onírica, a beleza. O amparo dessas maos pequenas.

O amparo dessas maos pequenas frente o pesadelo de amputações e militares a sorrirem em selfies entre detidos de joelhos com os olhos tapados, queimaduras, bridas apertando mui forte os pulsos, violações com armas de fogo. O amparo dessas maos pequenas frente a neurose sionista. Umha cúpula sagrada feita com as maos do neno, a desenhar umha carícia para os anjos.

(in·ti·fa·da)

Há crianças sem nenhum familiar vivo. Há crianças sem nenhum familiar vivo. Há crianças sem nenhum familiar vivo. Há cidadãs palestinas a cantar músicas para essas crianças dançarem entre o barulho dos bombardeios.

Há homens colocando flores no cabelo dos mártires assassinados na Cisjordânia. Há mulheres cavando túneis como trincheiras antifascistas, desde o quarto da lavadora até a liberdade.

Há milhões de pessoas vestindo kufiyas mais alá do Mediterráneo e o Jordam.

Ainda há quem arrola sementes para o futuro da espécie.

Mesmo em essa jaula onde se comete um genocídio, agora, agora mesmo, há pessoas a desejarem a vida, ainda com fame, ainda sem poder transitar um luto padrom, como dizia Mourid Barghouti, umha morte sem po, sem buracos na camisa, sem marcas nas costelas.

Ali, no meio das cores borrosas e da água suja há umha mulher parindo. Chora e surri ao mesmo tempo. Há um bebé que chora e respira ao mesmo tempo.

Há um homem agarrado a umha bandeira que morre. Há umha velha abraçada a umha oliveira que renasce. 

(in·ti·fa·da)

Ali está parindo-se o mundo do futuro.

Repite comigo: in·ti·fa·da.